TODO O RESTO
Martha Medeiros
"Existe o certo, o
errado e todo o resto". Esta é uma frase dita pelo ator Daniel
Oliveira vivendo Cazuza, em conversa com o pai, numa cena que, a meu
ver, resume o espírito do filme dirigido por Sandra Werneck e Walter
Carvalho. Aliás, resume a vida.
Certo e errado são convenções que se confirmam com meia dúzia de
atitudes. Certo é ser gentil, respeitar os mais velhos, seguir uma
dieta balanceada, dormir oito horas por dia, lembrar-se dos
aniversários, trabalhar, estudar, casar-se e ter filhos, certo é
morrer bem velho e com o dever cumprido. Errado é dar calote, rodar de
ano, beber demais, fumar, se drogar, não programar um futuro decente,
dar saltos sem rede. Todo mundo de acordo?
Todo mundo teoricamente de acordo, porém a vida não é feita de
teorias. E o resto? E tudo aquilo que a gente mal consegue verbalizar,
de tão intenso? Desejos, impulsos, fantasias, emoções. Ora, meia
dúzia de normas preestabelecidas não dão conta do recado. Impossível
enquadrar o que lateja, o que arde, o que grita dentro de nós.
Somos maduros e ao mesmo tempo infantis, por trás do nosso autocontrole
há um desespero infernal. Possuímos uma criatividade insuspeita:
inventamos músicas, amores e problemas, e somos curiosos, queremos
espiar pelo buraco da fechadura do mundo para descobrir o que não nos
contaram. Todo o resto.
O amor é certo, o ódio é errado e o resto é uma montanha de outros
sentimentos, uma solidão gigantesca, muita confusão, desassossego,
saudades cortantes, necessidade de afeto e urgências sexuais que não
se adaptam às regras do bom comportamento. Há bilhetes guardados no
fundo das gavetas que contariam outra versão da nossa história, caso
viessem a público.
Todo o resto é o que nos assombra: as escolhas não feitas, os beijos
não dados, as decisões não tomadas, os mandamentos a que não
obedecemos, ou a que obedecemos bem demais - a troco de que fomos tão
bonzinhos?
Há o certo, o errado e aquilo que nos dá medo, que nos atrai, que nos
sufoca, que nos entorpece. O certo é ser magro, bonito, rico e educado,
o errado é ser gordo, feio, pobre e analfabeto, e o resto nada tem a
ver com estes reducionismos: é nossa fome por idéias novas, é nosso
rosto que se transforma com o tempo, são nossas cicatrizes de
estimação, nossos erros e desilusões.
Todo o resto é muito mais vasto. É nossa porra-louquice, nossa
ausência de certezas, nossos silêncios inquisidores, a pureza e a
inocência que se mantêm vivas dentro de nós mas que ninguém percebe,
só porque crescemos. A maturidade é um álibi frágil. Seguimos com
uma alma de criança que finge saber direitinho tudo o que deve ser
feito, mas que no fundo entende muito pouco sobre as engrenagens do
mundo. Todo o resto é tudo que ninguém aplaude e ninguém vaia, porque
ninguém vê.
Colaboração
Cibele Menini
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