Resta,
acima de tudo,
essa capacidade de ternura
essa intimidade perfeita com o
silêncio.
Resta essa voz íntima pedindo
perdão por tudo.
Perdoai: eles não têm culpa de
ter nascido.
Resta esse antigo respeito pela
noite
esse falar baixo
essa mão que tateia antes de
ter
esse medo de ferir tocando
essa forte mão de homem
cheia de mansidão para com tudo
que existe.
Resta essa imobilidade
essa economia de gestos
essa inércia cada vez maior
ante diante do infinito
essa gagueira infantil de quem
quer balbuciar o inexprimível
essa irredutível recusa à
poesia não vivida.
Resta essa comunhão com os sons
esse sentimento da matéria em
repouso
essa angústia da simultaneidade
do tempo
essa lenta decomposição poética
em busca de uma só vida
de uma só morte
um só Vinícius.
Resta esse coração queimando
como um círio numa catedral em
ruínas
essa tristeza diante do
cotidiano
ou essa súbita alegria ao ouvir
na madrugada
passos que se perdem sem memória.
Resta essa vontade de chorar
diante da beleza
essa cólera cega em face da
injustiça e do mal-entendido
essa imensa piedade de si mesmo
essa imensa piedade de sua inútil
poesia
de sua força inútil.
Resta esse sentimento da infância
subitamente desentranhado
de pequenos absurdos
essa tola capacidade de rir à
toa
esse ridículo desejo de ser útil
e essa coragem de comprometer-se
sem necessidade.
Resta essa distração, essa
disponibilidade,
essa vagueza de quem sabe que
tudo já foi,
como será e virá a ser.
E ao mesmo tempo esse desejo de
servir
essa contemporaneidade com o
amanhã
dos que não têm ontem nem
hoje.
Resta essa faculdade incoercível
de sonhar,
de transfigurar a realidade,
dentro dessa incapacidade de
aceitá-la tal como é
e essa visão ampla dos
acontecimentos
e essa impressionando e
desnecessária presciência
e essa memória anterior de
mundos inexistentes
e esse heroísmo estático
e essa pequenina luz indecifrável
a que as vezes os poetas tomam
por esperança.
Resta essa obstinação em não
fugir do labirinto
na busca desesperada de alguma
porta quem sabe inexistente e
essa coragem indizível diante
do grande medo
e ao mesmo tempo esse terrível
medo de renascer dentro da
treva.
Resta esse desejo de sentir-se
igual a todos
de refletir-se em olhares sem
curiosidade, sem história.
Resta essa pobreza intrínseca,
esse orgulho,
essa vaidade de não querer ser
príncipe senão de seu reino.
Resta essa fidelidade à mulher
e ao seu tormento
esse abandono sem remissão à
sua voragem insaciável.
Resta esse eterno morrer na cruz
de seus braços
e esse eterno ressuscitar para
ser recrucificado.
Resta esse diálogo cotidiano
com a morte
esse fascínio pelo momento a
vir, quando, emocionada
ela virá me abrir a porta como
uma velha amante
sem saber que é a minha mais
nova namorada.
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