Os olhares são
muitos, pode-se
dizer. Há o olhar
apaixonado que se
entrega e brilha; há
o olhar desesperado
que se perde de si
mesmo e o olhar
enlouquecido que já
não olha exatamente.
Há um olhar que
submete e outro que
liberta; há um olhar
profano que quer
saber e um olhar
sagrado que pensa
que sabe; há um
olhar que acolhe e
outro que amedronta;
um olhar que ama e
outro que afronta;
um olhar inocente e
um olhar culpado ;
um olhar sincero e
um olhar forçado. Há
um olhar que se
derrama e que fácil,
se descobre o nome e
outro, feito chama,
que nos invade e
consome.
Há um olhar que vem
e outro que se
esvade; um olhar
inteiro e outro pela
metade. Os olhares
são muitos, "pode-se
dizer".O olhar que a
Burca esconde é,
assim, um olhar
fragmentado,
dividido pelo que se
lhe oferece como
impossibilidade. Não
há encontro nesse
olhar, não há olhar
compartilhado.
Atrás da Burca, há
então, sobretudo,
uma ausência; uma
ausência do
reconhecimento pelos
outros. Se pensarmos
um pouco no olhar
que as mulheres
podem ter com a
Burca, haveremos de
concluir que eles
lhes assegura a
lembrança constante
de uma prisão. Entre
elas e o mundo há
uma tela, um limite
inexpugnável. Tudo o
que lhes for
possível vislumbrar
no espaço público
estará marcado pelas
sombras e pelo
tracejado dessa
tela. Essa condição
pode ser lembrada,
também, para o olhar
daqueles que foram
possuídos pelas
ideologias. O "olhar
ideológico" é aquele
que só pode enxergar
as sombras
autorizadas por seus
limites. Nos
referimos a um olhar
específico que só
reconhece aquilo que
já foi visto e que,
portanto, não se
surpreende. Trata-se
de um "olhar"
adoecido este. Um
olhar que distorce o
que vê reconhecendo
como legítimas
apenas as imagens
que confirmam o que
se pretendia ver. Um
olhar, no mais, que
volta-se sempre para
o horizonte, para o
futuro, mas que
parece ter
dificuldades
extraordinárias em
reconhecer o que
está perto, o
presente. Se
queremos um outro
mundo e se
imaginamos que ele é
possível seria,
então, preciso estar
atento para aquilo
que do "velho mundo"
ainda carregamos
como uma tatuagem
incômoda. Em outras
palavras: deveríamos
tratar de nos livrar
de nossas Burcas.
Há uma "ordem da
coisas" que se
desprega dos
sentidos com os
quais ainda
pretendemos
aprendê-la, que
herdamos, que nos
indiferencia pelos
preconceitos que
compartilhamos, ou
pelas angústias que
nos paralisam.
Vivemos um tempo
onde o original é
cada vez mais raro.
Parafraseando Walter
Benjamin, é como se
os indivíduos
perdessem sua
"aura", vale dizer:
sua autenticidade.
Dito isso, não seria
demais insistir que
um novo olhar é
possível.. Com esse
olhar, recusaremos
as certezas
políticas em troca
de princípios de
natureza moral. A
democracia é, entre
todos os regimes,
aquele que de uma
forma mais acabada
afasta- se da
verdade. Suas
razões, afinal,
serão sempre aquelas
a que se chegou por
conta de um debate;
seus motivos, os que
parecem mais justos.
Nesse quadro, a
utopia dos Direitos
Humanos está a nos
lembrar que a
tolerância, como
respeito pelo outro
e valorização da
diferença, talvez
seja apenas a
sabedoria que supera
o que há de temível
na idéia da verdade.
"Os olhares são
muitos, pode-se
dizer. Há um olhar
de verão, olhar de
mormaço para o chão
grudento e as
paredes suadas.
Olhar para os
açudes, olhar de
rede e descanso. Há
um olhar de outono;
olhar ventoso para
as folhas do plátamo;
olhar para as
básculas e os
relâmpagos. Há um
olhar de inverno;
olhar de veludo e
pelúcia; olhar de
fogo e de vinho. Há,
sobretudo, um olhar
de primavera, um
olhar de setembro
que anuncia a
mudança; um olhar de
olhos cheios de
estrelas, um olhar
de bandeiras.
A propósito, qual é
mesmo o seu olhar?
Colaboração de
Cibele Almeida |